NORTE JÚNIOR, DO ROSSIO AO CHIADO
05/2022
No panorama da arquitectura lisboeta do início do século XX destacam-se os nomes de vários arquitectos que assumem um papel de relevo a nível nacional, ditando os caminhos da evolução e renovação constante de modelos ornamentais, de modos de edificação e de sistemas construtivos. Uma destas figuras de relevo é Manuel Joaquim Norte Júnior, arquitecto que inicia a sua actividade nos primeiros anos de Novecentos e que, sendo desde cedo galardoado em diversas edições do Prémio Valmor, se torna um dos principais arquitectos de Lisboa na segunda e na terceira décadas do século.
Norte Júnior, como é designado abreviadamente desde então, nasce na véspera de Natal de 1878 em Lisboa, sendo filho de um artífice do mundo da construção, designadamente um carpinteiro de origem algarvia, situação comum a muitos outros arquitectos do seu tempo. Após completar o seu curso de arquitetura em Lisboa, prossegue os seus estudos enquanto pensionista do Estado em Paris. Após o seu regresso a Lisboa, a sua primeira obra de destaque é a Casa-atelier do reputado pintor José Malhoa, situada numa esquina da Avenida 5 de Outubro, a qual projecta em 1904 e pela qual recebe o Prémio Valmor do ano seguinte. Entre as suas obras mais conhecidas no domínio residencial urbano estão o Palacete de José Maria Marques situado na Avenida Fontes Pereira de Melo, conhecido por albergar a sede do Metropolitano de Lisboa, obra que projecta em 1911 e pela qual recebe o Prémio Valmor de 1914, bem como os grandes e inovadores edifícios mandados erguer pelo Visconde de Salreu na Avenida da Liberdade entre os números 206 e 208, igualmente com frente para a Rua Rodrigues Sampaio, projectados a partir de 1912 e galardoados com o Prémio Valmor de 1915, além do edifício da esquina da Rua Braamcamp com a Rua Castilho projectado em 1921. A estes podemos ainda somar a sede de “A Voz do Operário”, projectada em 1912 para um local de destaque junto da Igreja de S. Vicente de Fora, ou os Armazéns Abel Pereira da Fonseca, projectados em 1917 para o Poço do Bispo. Para além dos limites da capital destacam-se vários projectos que realiza para a Costa do Sol e, sobretudo, o Palace Hotel das termas da Curia e o edifício da Sociedade Amor-Pátria na cidade açoreana da Horta.
Sendo no princípio do século XX, a zona da Baixa Pombalina e do Chiado, o território de maior destaque urbano em Lisboa no domínio comercial, também ali Norte Júnior deixará a sua marca em diversas obras de referência e de transformação urbana, assumindo frequentemente posições de grande destaque e visibilidade nas principais artérias e espaços, tais como a Rua Garrett, a Rua do Carmo, o Rossio e a Rua Augusta. A primeira obra de grande destaque projectada por Norte Júnior neste território de matriz pombalina corresponde ao Café Chave d’Ouro, encomendado por Joaquim Albuquerque em 1915 para a frente poente do Rossio. A intervenção realizada por Norte Júnior, durou apenas até meados da década de 1930, quando uma remodelação e ampliação do Café Chave d’Ouro ditou o total desaparecimento dos elementos datados de 1915-1916. O projecto era caracterizado sobretudo pela sua representação exterior, de grande exuberância formal. A fachada sóbria setecentista é rasgada no piso térreo e primeiro andar por um vistoso frontispício ricamente ornado escultoricamente. Este frontispício assume uma composição assimétrica, com um tramo de vão único do seu lado esquerdo, relativo a uma tabacaria, e um tramo mais largo do seu lado direito, correspondente à entrada no café. É este ultimo que assume maior destaque, com uma composição tripartida no piso térreo, onde a porta em posição central surge flanqueada por duas colunas estilizadas em mármore, e um janelão único no piso superior, sendo todos os vãos caracterizados pelos seus remates superiores em arco abatido. Sobre a porta central, interrompendo a cornija curva com volutas, emerge uma figura humana alada segurando uma lanterna sobre uma faixa com a designação do café. Lateralmente, rematando as ombreiras do vão tripartido, surgem dois mascarões e, superiormente a estes, duas luminárias. Rematando superiormente toda a composição é disposto um medalhão com a data de 1916. Apesar da curta existência desta obra, alguns dos seus elementos serão retomados em projectos seguintes de Norte Júnior para este território.
O Edifício do Crédito Predial Português, erguido em plena Rua Augusta, constitui a maior obra de Norte Júnior neste território. Por este motivo, este edifício destaca-se das dominantes edificações de origem pombalina pela sua fachada marcadamente ecléctica com elementos clássicos estilizados de um modo geométrico, indiciando já em 1919 as vindouras influências Art Déco observáveis com maior clareza num desenho proposto para os portões térreos, que não chega a ser executado. Ressurgem aqui as colunas como elemento marcante da entrada principal, feita agora por três altas portas localizadas num tramo central, mais largo, flanqueado por outros dois tramos mais estreitos, separados daquele por duas altas pilastras estilizadas. Os interiores, inteiramente alterados na década de 1970, eram um reflexo da tripartição do alçado principal, sendo que os postais de entrada permitiam aceder a um amplo átrio de múltiplo pé-direito, num espaço de planta quadrangular com os pilares de gosto geometrizante nos ângulos contrastando com o pavimento em mármore com desenho clássico ainda hoje existente.
A mais conhecida obra realizada por Norte Júnior na zona do Chiado corresponde à remodelação e ampliação do espaço ocupado pela firma Teles e C.ª, o celebrado Café “A Brasileira”, realizada em 1922. Fora em 1905 que se instalara aqui o estabelecimento de venda de cafés da firma Teles e C.ª, num espaço anteriormente ocupado por uma camisaria. Com o sucesso do negócio e a necessidade de introdução de novas valências, o espaço passa a funcionar igualmente como café em 1908. Catorze anos volvidos, Norte Júnior é chamado para projectar as obras de ampliação do espaço incluindo a sua ostentosa ornamentação interior. O edifício residencial de matriz pombalina apresentava já nos primeiros anos de Novecentos o seu piso térreo transformado pela introdução de devantures em ferro fundido, uma das quais correspondente ao espaço comercial da firma Teles e C.ª. Esta devanture, de três vãos, é agora substituída por um frontispício de elaborado desenho ecléctico na qual se repete a estrutura inicial tripartida em ferro fundido, agora com uma nova ornamentação e enquadrada por um arco de volta inteira e por duas esculturas situadas nos extremos laterais, projectando-se sobre o passeio apelando à entrada no interior do café, numa conjugação da arquitectura e da escultura ornamental que suplanta o modelo já expresso anos antes no Café Chave d’Ouro. O espaço interno, uma sala estreita e comprida, é marcado pelo seu pavimento em mármore preto e branco, pelas duplas pilastras de mármore preto e capitéis dourados ritmando as paredes laterais, pelos seus lambrins de madeira, pelos seus espelhos e pelos seus estuques, acrescentando-se a estes a elaborada parede de fundo com frontões enquadrando um relógio central. O balcão do café ocupa o lado à direita, transpondo para a planta do espaço comercial a tripartição da fachada. O café será o epicentro de um importante círculo artístico e cultural da capital, sendo por este motivo que logo entre 1922 e 1923 vários dos artistas que o frequentam realizam um conjunto de pinturas em tela, dentro das correntes artísticas mais vanguardistas, sendo aquelas expostas nas paredes do café. Entre os seus autores estão Jorge Barradas, Eduardo Viana, Almada Negreiros e Stuart Carvalhais.
As pinturas originais são vendidas em 1969, mas em 1971 outras telas de artistas contemporâneos, como Carlos Calvet, Eduardo Nery e Nikias Skapinakis, vêm ocupar o espaço das anteriores. O agora celebrado Café “A Brasileira” acaba por se tornar num dos cafés mais concorridos de Lisboa também pela sua relevância enquanto espaço de comunhão e participação da comunidade intelectual e artística da cidade. Escritores e artistas de renome como Almada Negreiros ou Fernando Pessoa encontraram ali um lugar de debate e inspiração para gerações futuras. De relevar que os actuais proprietários ainda hoje promovem esta singularidade permitindo o contacto do visitante com objectos pessoais de Fernando Pessoa dignamente ali expostos.
A assiduidade de Fernando Pessoa motivou a inauguração, nos anos 1980, da estátua em bronze da autoria de Lagoa Henriques, que representa o escritor sentado à mesa na esplanada do café. Com toda a importância que teve na vida cultural do país, mantém hoje intacta a sua identidade, quer pela especificidade da sua decoração, quer pela simbologia que representa por se encontrar ligada a círculos de intelectuais.
Em 1925 Norte Júnior volta a conceber um projecto de relevo para a zona do Chiado, desta vez para a Rua do Carmo, designadamente o estabelecimento comercial da Joalharia do Carmo, detido então por Raul Pereira e adquirido posteriormente pelo ourives portuense Alfredo Pinto da Cunha. Este espaço ocupa os espaços inferiores da chamada “muralha do Carmo”, um alto muro de suporte das estruturas do antigo convento arruinado pelo terramoto de 1755. A muralha fora nobilitada e reconstruída em 1911-1912 segundo um projecto da autoria do arquitecto Leonel Gaia que passou pela introdução de arcos e de pilastras amplamente espaçadas. Os espaços térreos de uso comercial são ocupados em 1925 pela Luvaria Ulisses, a sul, seguindo-se a Joalharia do Carmo. É esta última que é projectada por Norte Júnior, ocupando o espaço correspondente a um arco abatido cujo vão é tratado de forma semelhante ao do frontispício de “A Brasileira”, com uma ornamentação ecléctica em ferro fundido.
O pequeno espaço interior é caracterizado por um primeiro compartimento de planta rectangular ao qual se sucede um outro, disposto por expansão do canto esquerdo do primeiro, de planta arredondada, onde se inclui uma escadaria de acesso à sobre-loja. Por oposição aos elementos de ferro da fachada, no interior a ornamentação assume uma clara influência Art Déco presente em lambrins, vitrinas e no próprio guarda-corpos da escadaria. Apesar dos seus cerca de 100 anos de existência, o espaço comercial mantém a sua actividade de joalharia, mas agora em exclusivo sobre o trabalho minucioso do ouro na arte da filigrana, em sintonia com os preceitos de rigor introduzidos no desenho da concepção da fachada.
No ano seguinte Norte Júnior realiza uma nova intervenção de relevo no contexto dos edifícios de matriz pombalina, desta vez retornando à Rua Garrett. No edifício da esquina defronte de “A Brasileira” estava instalado desde 188 um estabelecimento comercial fundado pelos irmãos António e Ramiro Leão. Em 1926 um incêndio destrói parcialmente o edifício e este estabelecimento comercial, conduzindo à necessidade de ali realizar uma profunda renovação. Neste contexto, a intervenção de Norte Júnior passa simultaneamente pelo interior da loja bem como pela modernização das fachadas. No primeiro caso, destaca-se a introdução de vários elementos de destaque. Um deles é uma das duas escadarias, a qual apresenta pinturas murais concebidas pelo pintor João Vaz (1859-1931) representando o Palácio de Queluz, a Boca do Inferno, a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos e a Basílica da Estrela, juntando-se a estas um vitral com motivos vegetalistas e animais. Outros são o emblemático ascensor que, tal como os restantes espaços do interior do estabelecimento, é ornado numa estilização Luís XVI, enquanto que nos tectos surgem três pinturas a óleo elaboradas por alunos da escola Afonso Domingues com base em desenhos de João Vaz. No exterior a intervenção de Norte Júnior destaca-se sobretudo pela introdução de um torreão em balanço sobre as fachadas no próprio cunhal, atribuindo-lhe um maior destaque urbano ao torná-lo uma charneira entre a Praça Luís de Camões e o eixo comercial do Chiado.
Em 1929 Norte Júnior realiza uma nova intervenção para o quarteirão do Café Chave d’Ouro, elaborando o projecto para a renovação das instalações do centenário Café Nicola, o qual fora adquirido igualmente por Joaquim Albuquerque. Esta nova intervenção vem em linha com os pressupostos já observados nas fachadas dos cafés Chave d’Ouro e de “A Brasileira”, bem como da Joalharia do Carmo, com a tripartição da fachada, o recurso a elementos escultóricos de relevo e a aplicação de luminárias lateralmente, assinalando exteriormente o café. Os elementos verticais que estabelecem a tripartição do grande vão são novamente constituídos por duas colunas em mármore, à imagem do café projectado por Norte Júnior para o mesmo quarteirão em 1915. Estas colunas, que aqui assumem uma clássica ornamentação de ordem jónica, suportam agora uma verga curva rematada lateralmente por exuberantes volutas, as quais enquadram a designação do café. O projecto de Norte Júnior terá igualmente abrangido o mobiliário e utensílios utilizados no interior. No entanto, desta intervenção resta hoje apenas o frontispício de desenho ecléctico, uma vez que o espaço interior foi somente seis anos depois alterado profundamente seguindo um projecto do arquitecto Raul Tojal, o qual ali empregou uma ornamentação de um gosto Art Déco tardio que certamente difere da inicialmente proposta por Norte Júnior.
Nas décadas seguintes Norte Júnior realizará novos projectos para o território lisboeta da Baixa e do Chiado, como é o caso da remodelação do já desaparecido estabelecimento comercial Américo Lima na Rua Augusta e de um edifício na mesma artéria, entre outros. No entanto, as obras realizadas na década de 1920 ainda existentes são aquelas que assumiram maior destaque urbano e aquelas que revelaram um maior contributo para a modernização arquitectónica do núcleo comercial da capital, mantendo-se como símbolos vivos da dinâmica cultural e artística ali dominante durante várias décadas do século XX, nomeadamente o Café “A Brasileira” e a Joalharia do Carmo, duas obras ainda hoje preservadas na sua integralidade.