A barreira invisível - notas sobre um dispositivo cénico
08/07/2022
As questões em torno do “limite” sempre me intrigaram aquando da análise das relações humanas no quotidiano urbano. Perante o desafio de reflectir sobre uma ou a “Avenida” e seu contexto, em particular na polis do Fundão, duas questões surgiram de modo vincado: a velha máxima do arquitecto Nuno Garcia – “Fundão, a cidade de risco ao meio” e qual o entendimento sobre a definição de um eixo viário que ao longo dos tempos se tornara numa extensa Ágora dos tempos modernos. É na base desta mutação de certa forma tentacular entre dois conceitos avenida/ágora que a expansão da democratização do espaço, em particular neste lugar do Fundão, não ocorre tradicionalmente, apenas e só nos limites de uma Praça. Desde a década de 60 do século passado que este eixo é o motor de transformação, onde o espaço-tempo se reflecte no exercício da vida quotidiana sobre “layers” muito bem explanados nas “Velocidades Contemporâneas” de Alexandre Melo.
“Cercar uma horta ou um jardim é comum; não, cercar um império.” Diria Jorge Luís Borges aquando dos relatos de sinólogos sobre a decisão singular de Qin Shi Huang de erigir a grande muralha da China. A “barreira invisível” é um fenómeno que o inconsciente produz segundo o nosso background social e que Edward T Hall constrói no conceito de “dimensão oculta”. A dimensão oculta, no seu entendimento é definida pelo espaço que “trabalha “ num constant exerccio de aproximação, de afastamento e que sobretudo possibilidta os nossos afectos e relações humanas sem que conscientemente entendamos essas evidências. Para Edward T Hall que categoriza determinadas reacções particulares entre pessoas e o espaço, enquanto dimensões ocultas inconscientes. Nessa medida baliza o conceito em quarto dimensões de partilha do espaço: íntima, pessoal, social e pública.
Perante os layers das “velocidades contemporâneas” de Alexandre Melo e a as relações sociais da “dimensão culta” de Edward T Hall reconheço que uma fotografia do arquivo do Jornal do Fundão sobre um dos passeios da Avenida da Liberdade na cidade do Fundão agregava com rigor as velocidades e relações que ocorrem na longa ágora da cidade.
Os layers são aparentemente visíveis no reconhecimento das diferente velocidades de apropriação do eixo viário pelos automóveis e do passeio pelos transeuntes. A problemática estava em cima da mesa e a formula de como compactar todos estes cenários num contexto plano de uma só dimensão, era o desafio. O eixo palco-publico é virtuoso mas limitador, contudo a premissa era desafiadora.
Assim arrancámos para o desenho de uma estrutura que servisse de barreira. Um limite que construísse a fronteira entre o social e o privado mas que potenciasse outras dimensões. Que permitisse viajar tal como Lewis Carroll lançou Alice para “o outro lado do espelho”.
De um modo minimalista foi criada uma estrutura de madeira constituída por diferentes módulos de se acoplam de modo orgânico mas com ordem certa. Todos os módulos são diferenciados e constituídos de uma segunda estrutura no seu interior que permite a colocação de adereços de figurismo dos actores. O volume dos adereços provoca consequentemente uma “espessura”, uma densidade, que se transforma numa membrana atravessável e não reconhecida pelo público. É este processo de atravessamento que permite a definição das viagens tempo e espaço. A personagem poderá navegar temporalmente entre anos ou décadas para o mesmo espaço ou para outro local qualquer com intimidade diferenciada do anterior. Por outro lado a encenação acabou por descobrir a potencialidade do processo introduzindo a mutação dos actores em diferentes personagens aquando dos atravessamentos. Perante este exercício, a lógica estava ganha, contudo a “Avenida” tinha muitos layers. e para os materializar a estrutura “fonteira” tinha de poder rodar, recuar e avançar por forma a estrangular ou libertar a dimensão entre actores e público.
A Amália, como carinhosamente o encenador a denominou, tornou-se também num personagem com riqueza simbólica e profundamente estruturante no contexto da peça. Mais tarde percebi que o nome do dispositivo cénico não era um acaso. Era também uma dimensão oculta, um fado cantado de uma história de uma cidade... das cidades!